6 de novembro de 2007

Lampyridae

As horas passavam indistintamente, como um fluido vagar de bolhas sobre o oceano...talvez fosse apenas uma sensação sem sentido, ou uma fissura no tempo. A rua da metrópole, os leves passos, as luzes fantasmagóricas ressoando, reluzindo, desfocando-se sobre o tumulto leve do fim da noite. Possivelmente eram quase 12 horas.

O apartamento era o 1808. Subiu sem urgência as escadas, escuras de muitas solas caminhantes. Estreitas, claustrofóbicas. Centenas delas. Em seu andar, tirou a chave, ouviu o tilintar do molho, o eco nas trevas do corredor. A porta abriu-se, mas não ligou a luz. A penumbra trazia algo de familiar aos seus olhos, invocava uma vontade subconsciente de se engolfar na escuridão sem muitas perguntas. A televisão permanecera ligada, fora do ar, cuspindo na sala apenas faíscas metálicas de luzes confusas. Deixou-se jogar no sofá verde musgo que já descascava, sentindo o odor abafado, obscuro, com um leve fragmento de mistério que não havia percebido antes. A janela estivera aberta todo este tempo, e uma brisa gélida se arrastava levemente.

"Estranho" - Pensou. Decerto não lembrava de tê-la deixado aberta. De qualquer forma, confortava-lhe saber que daquele andar a probabilidade de invadirem o apartamento pela janela era vaga e distante. Seria o trinco, quebrado?

Minutos se alongaram, e permaneceu estirado no sofá, mal respirava. Cansava-lhe os músculos, e seus pés tinham calos horríveis. A brisa ainda entrava, faíscas reberveravam nas paredes, fugazes. Levantou-se, foi até a janela. Não era a melhor das paisagens, talvez? De frente a outro prédio, mas de certo ângulo era possível enxergar uma parte da cidade. Acendeu um cigarro, e aproximou-se da janela. Desistiu. "Esse vento vai apagar", resolveu.

Foi à cozinha, dividida da sala apenas por uma meia parede. A geladeira era ruidosa, abriu com estrépito. O mofo cobria as paredes internas, e restos de alimentos se amontoavam uns sobre os outros, advindos de dias passados, mas não muito longínquos. Colocou água em um copo de vidro, e logo voltou ao sofá. Sem sapatos, passou os dedos em seus cabelos, sentindo a oleosidade, colocando-os atrás de suas orelhas. Pôs o cigarro na água, esperou alguns segundos. Bebeu-a. Capturou o cigarro com os dentes, e mastigou-o. Certa vez perguntaram-lhe que tipo de hobby era esse. "Anti-stress", dissera. "Pulmão 100%. Cáries morrem".

Não era comum sentar-se assim após um dia tão cansativo, geralmente dormia rapidamente. Mas gostava de observar as formas nas faíscas da televisão fora do ar, arriscar identificar uma ou duas imagens, existentes ou não, aparentes ou não. Com o hábito, conseguiu prever o padrão dos riscos e imaginar programas tão extraordinários quanto sem sentido. Pura perda de tempo, como ele próprio julgava. Contudo, no fundo acreditava em vultos subliminares..."Diz-se de um estímulo que não é suficientemente intenso para que o indivíduo tome consciência dele, mas que, repetido, atua no sentido de alcançar um efeito desejado", lembrou-se do ginásio. Enxergava sua própria vida (e há grandes chances que a dos outros também) como o grande exemplo de subliminar. Viver, cada dia, sem consciência, ou mínima dela, em doses homeopáticas...até o momento do grand finale, "sublime", como se satisfaz em pensar: o fim de tudo, e a hora da grande perspectiva, o último olhar do alto para enxergar tudo de forma complexa e panorâmica, para dizer "É, foi isso mesmo". Fantástico.

Amargou o gosto da nicotina. Cuspiu no copo. A janela ainda permanecia aberta, e a brisa entrava sem cessar. Estranho. Nunca tinha visto vaga-lumes nesta cidade gigantesca. Dois ou três pareciam indecisos, sem saber se entravam ou não, e um vento mais forte carregou-os para dentro. Talvez tenham se sentido confortáveis: as faíscas da TV pareciam mais simétricas.

Era a hora: fechar a janela, ou a hipotermia. Névoa transparecia em sua respiração, e sua sala já adquiria uma neblina desconfortável. Foi até a janela e observou o prédio em frente. Nenhum vestígio de luz. Apenas pontinhos cintilantes. Então deu-se conta, e viu que não eram apenas pontinhos, mas milhares de milhares de vaga-lumes perambulando da decadência noturna, enquanto brumas espessas cobriam as ruas lá embaixo. Apoiou-se na borda da janela, observando o espetáculo mais bizarro daquele dia. Passaram-se alguns segundos, e ele, estático, apreciava. "Essa terra também tem suas próprias constelações", pensava.

Após um tempo que não soube explicar, sentiu uma gota cair em seus ombros. Seria o orvalho? Estaria tão frio? Notou as unhas arroxeadas, e os cabelos meio duros com lascas de gelo encrustando-se entre os fios. Espantado, tocou a região entre a boca e as narinas, e sentiu uma crosta gélida se formando de sua respiração. Suas articulações estavam muito enrijecidas, teve dificuldade em despregar suas mãos da janela. Os vaga-lumes pareciam incontáveis, irresistíveis, desconfortáveis, luminosidade esquizofrênica, zumbindo, subindo, vagando em todas as direções, criando rastros tal qual néon desgovernado pelos ares da metrópole. Não poderia resistir mais que isso: precisava fechar a janela.

Olhou para trás, e já haviam centenas invadido sua sala. As sombras resvalavam na luz nas paredes, criando uma atmosfera de bioluminescência e insanidade avassaladora, e vultos relampeavam incansáveis, anômalos contra as faíscas enlouquecidas da TV, chiando, exasperando-se, jorrando nas paredes um frenesi eletrônico descomunal, tempestade de furiosas investidas das luzes, sombras, espasmos.

O extremo frio já congelava seus pulmões, e lagrimas cristalizavam-se em seus olhos. No derradeiro momento em que, com esforço colossal, arrastava a metade direita da janela para fechá-la, olhou de relance para o céu, e permaneceu estagnado.

A lua cheia desfazia-se em pedaços, quebrando-se ao meio, e fragmentando-se, diluindo-se no firmamento escuro, proliferando suas partículas luminosas em um pó excêntrico, vertiginoso, espalhado aos ventos obscuros, empestando o ar com arremedo de estrelas fosforecentes, doentias, inescapáveis. Partículas que tomavam uma forma peculiar, em vaga-lumes múltiplos, desastrosos, apocalípticos. Faziam brotar no ar a luz decadente do fim.

E de longe, via-se uma janela entreaberta no décimo oitavo ou décimo nono andar de um prédio sem nome. De lá se ouvia, em meio a chiados, uma música que saía de uma televisão, que alguém, por descuido, deixara ligada durante a noite.

"Firefly, firefly...on your glowing wings I'll ride..."

2 comentários:

  1. Espera um pouco, isso aí é a falta de criatividade ou de impulso que vc disse?

    Caramba, me dá uma dose disso aí!

    Muito bom mesmo, extremamente penetrante! Instantaneamente um de meus favoritos!

    A parte da lua se desfazendo, que idéia! Continuo seu fã!

    Errinho:
    "Sem sapatos, passou os dedos em seus cabelos, sentindo a oleosidade, colocando-os atrás de suas orelhas.">> Parece que ele passa os pés no cabelo.

    ResponderExcluir
  2. Que texto sensacional...Estava em um relevo e, quando menos se espera, um precipício! Incrível! Estou virando fã no terceiro texto lido. Mais sucesso ainda pra ti!

    ResponderExcluir