27 de junho de 2005

O Dom da Fênix

As flechas de plumas negras cortam o ar como relâmpagos ensandecidos cortam as nuvens durante as densas tempestades de inverno. Neste mesmo ar rasgado, ecoam gritos de fúria, gritos de medo, e gritos de desafio. Inúmeras vozes borbulham em uníssono, e as línguas negras do inimigo unem-se às nossas, o prólogo da impetuosa canção da guerra. 

Existem milhares ao meu redor, mas estou sozinho. Vejo os céus se fecharem em minha solidão, despejarem sua ira em águas gélidas e trovejarem insultos mascarados. Os soldados inimigos se aproximam, armados de medo e destruição. Seus rostos disformes indicam sua malevolência cruel, sua presença aterrorizante retumba como em tambores a cada passo, a cada instante, alertando a natureza o massacre que está por vir, o sangue que será derramado, a terra que será maculada. O sol, não percebi, foi-se.

Os olhos, ai, os olhos daqueles homens. Seus olhos cospem ódio em nós, enquanto lágrimas escorrem dos meus. Não mais escuto o eco do terror. Eles estão mais perto, mais perto...Sinto a batida de seus corações corruptos...Minha espada, empunho-a ferozmente, está ao meu lado. Meu reflexo cinzento em sua lâmina dá ao meu corpo força, não sinto o peso insuportável de minha armadura, não mais sinto o calor, mas o silencioso frio das gotas suicidas da chuva. Meu coração explode em ansiedade, a angústia percorre o campo da batalha, furta minha calma. Sinto o fétido odor, o suor, o sangue, a cólera intensa; o inimigo alcança-nos, e rouba-nos. Perco a esperança.

Está escuro. Despiram-me, estou vestido de trevas. Arrancaram meus olhos, não enxergo. Cortaram minha língua, não falo. Amputaram minhas pernas, não ando. Meus sentidos me abandonaram covardemente, caí nesta escuridão eterna? Minhas ancestrais crenças de nada valem, tudo é inacreditável em meio ao nada. Meu desejo antigo em acreditar esvai-se em vapores inextinguíveis. Percebo a fé, está me deixando sem misericórdia. Perco a fé.

Um medo inimaginável corre em minhas veias agora, não posso respirar, o ar não existe mais...Estou sufocando, o medo me enforca...Temores vis assolam minha alma, se ainda tenho uma. Ai, não sinto meu coração bater. Roubaram-me tudo, não me encontro em mim. Não sei quem sou. Estou terrivelmente aprisionado em cela de augúrios, à corrente de espinhos férreos, minha mente, imersa em pensamentos niilistas e indolores, não pensa mais. Estou perdido em pesadelos inconstantes, sombras imperfeitas e sonhos impróprios. Estou me perdendo. Perco-me.



Não estou morto. Ouço uma luz inefável penetrar em meus olhos, cheiro o som da brisa chegar aos meus ouvidos, vejo o perfume de terra molhada. Minha pele retorna aos músculos, que retornam aos ossos, que retornam. Meu coração bate, minha mente se liberta escrupulosamente. Encontro-me novamente após muito tempo, eras indizíveis. 

Estou vivo. Olho em minha volta, incontáveis centenas de cadáveres jazem. O sol, em sua gloriosa jornada, eleva-se no amanhecer, num novo renascer. Lágrimas, desta vez diferentes, deslizam sobre minha face. Choro. Não me perdôo. A vida não me abandonou no momento em que perdi a esperança, a fé e a mim mesmo. A vida que se alimenta de esperança, que bebe na taça da fé, perdeu ambos em uma trágica simultaneidade. Perdeu seu reflexo quando me perdi, mas não se foi. Graças ao inexorável exército inimigo aprendo que a vida, a primeira e a última dádiva, a mais valiosa, a mais grandiosa, perece apenas no último segundo, quando então renasce em triunfo, sobre suas próprias cinzas.

24 de junho de 2005

Filhos de Roma

Não que em vossas faces, filhos de Roma, podeis distinguir os infortúnios de vossa prosperidade, pois não conseguis. Que habilidoso oráculo haveria de prever tão alucinante idéia? Teu orgulho talvez não prevalecesse ante os desígnios de Jove. E assim se perdeu. Acalantai-vos uns aos outros, ao menos aqueles felizardos que ainda não se perderam na negritude carbonífera ou que ainda não se consumiram nas chamas crepitantes de meu reinado. Meus olhos vêem vossas mãos agonizantes tateando a fumaça em busca de abrigo: decadência vossa! A mim, cabe apreciar espetáculo tão sublime. Quando, em tantas festividades, houve alguma com tantos atores e tais efeitos teatrais? É possível que a negligência se aposse de minha vontade, mas não nesta cerimônia. Creio que das mais belas vozes a minha não alcance os melhores tons, embora meus dedos ainda consigam dedilhar tão bem quanto as fiandeiras de Minerva!

Quem senão tu, nobre Roma
Cavou feliz a cova própria
Tu que foste grande glória
E toma o de Cibele cálice?

Quem senão tu, divina Roma
Armou alegre a tumba própria
E cantou com voz contraditória
A soma final de teus tantos dias?

Queima, Roma, em gigante pira
Tuas colunas de mármore e leis
E reduza-te em cinzas. Ó, quereis
A tira da dor estender até a morte.

Que ironia do destino podeis notar! Tal fumaça de vosso sangue em vapor aquece minha garganta e dificulta o meu cantar. Não quereis minha elegia? Lembrais que apenas ao som de uma lira Cérbero há de descansar, ou será que vós desejais sofrer a mordida mortífera do cão tricéfalo? Acreditais, filhos de Roma, que mesmo nos domínios de Plutão e Prosérpina vossas carnes hão de sentir dor além de qualquer sofrimento e sensação. Portanto, aceitais esta elegia concedida de tão bom grado.

Ó espíritos que nas chamas
Acendem qual negro carvão
Escutai este que toca a canção
E chama bons augúrios até vós.

Preferis as mandíbulas severas
Do vil animal canino tripartido
Que jamais foi antes concebido
Mas que feras todas o temem?

Vossas fogueiras ardem, filhos de Roma! Cinzas hão de ser vossa herança; negro é o vosso futuro e o presente queima com as altas labaredas infernais! Seja o palácio de Mecenas testemunha de vossa infelicidade inominável, pois daqui o vermelho rubro de douradas línguas do fogo que vos consome é mais cintilante, e vossos gritos de desespero constante afaga-me os ouvidos!

Queira o deus da cristandade
Salvá-los de seu tão invisível
Trono. Povo tão incorruptível,
Que maldade pode afligi-los ?

Ó Roma, que a vontade das Fúrias possa fechar vossas cortinas de fogo por toda eternidade!