3 de julho de 2005

A Estrada dos Mundos


Nada mais que os fulgurantes anseios sublimes de um coração alado haveriam de surgir resplandecentes ao céu da aurora, alimentando os sonhos de uma paixão tão explosiva quando imaginável. À beira de um penhasco sorridente, os olhos alçam asas aos céus, fitam maravilhados a essência matutina de um jardim sem rosas, mas brilhante pelo orvalho chorado nas trevas da noite. Imagina-se, pois é a mais bela forma de pensar. Imagina-se.

As faces silenciosas da mente fantasiam e perturbam, flutuam em vapores, pétalas e vozes, estonteiam em tempestades luminosas, cavalgam gélidas em cavalos ventosos. Cantam a sinfonia majestosa dos reis altivos e a melodia melancólica da flauta e do jovem que caminha dentre os bosques verdejantes de outrora. As faces que se calam em nossas mentes, que nos falam em vozes taciturnas aos ouvidos nossos. As faces de nossa imaginação sem lembranças ou vestígios, que surgem sem entoar o cântico dos que chegam e saem em fugidios momentos, sem ao menos evocar as singelas notas da elegia dos que partem. E a escuridão engolfa e inebria, e se esvai ao menor toque da luz que alumia as fontes dos devaneios mais intrínsecos e imortais.

Por que insistem em quebrar o encantamento pueril das vozes do transcendental? Na escuridão de um presente desencaminhado no julgamento da humanidade, quem ousou macular o oceano incandescente dos meus sonhos? A aurora ainda raia, e eles lá flutuam em meio às irreverentes nuvens, montados em grifos, pégasos e dragões, e o desejo de também voar com eles aos seus reinos, pertencer à magia deslumbrante das lendas que lhes deram origem. E cruzar a terra de mim, a mais longínqua, de estrada mais ardilosa e traiçoeira em sua sapiência de ilusões, mas tão bela, belíssima, indescritível, irracional, incoerente em seus céus multicoloridos. As estrelas de meus céus em crepúsculo, cujos olhares curiosos enxergam mais profundamente que quaisquer outros olhos, iluminam todas as terras, conspiram e amam, vêem e compreendem. Do outro lado de mim hei de encontrar as verdades inconstantes, as respostas aparentes, os sonhos perdidos, as dores inatas, as mentes clandestinas que se alastram e espalham as tramas oníricas de um destino inefável. Do outro lado de mim hei de encontrar aqueles banidos do mundo dos homens, reduzidos a sombras que ainda deslizam por sobre a terra dos céticos.

O que é o fruto de meu mundo? Quem há de garantir que ele não possui existência, se ele habita no território infinito da minha mente? Deixem, deixem que as sementes carreguem em seu âmago a esperança dos que sonham, a fonte dos sedentos, os olhos dos perdidos! Os filhos da mente dos homens, os filhos de nossas estrelas, que a realidade confunde e não suporta, e queremos nós que eles realmente tornem-se reais! Nossos filhos, que vagam entre o real e o imaginário, despencam dos precipícios e sangram com o sangue das nossas vidas terrenas. Por que há de haver o momento em que neles não mais nossa crença apontará? O momento inconcebível que assassina as criações das nossas incontáveis imaginações, o momento que cobra o preço mais incalculável, o custo dos nossos sonhos em tempos da infância para a passagem sombria à idade dos velhos. Os velhos, que morrem assim que uma década ecoa no espaço, desde quando matam o primogênito dos seus pensamentos.

Resquícios mortais dos mundos imortais que um dia existiram, e que ainda existem ocultos nas sombras da convicção empírica. As sobras do império imagético, do reino dos mil prismas, das terras que apenas são, e nada mais.

Em névoas tenho de buscá-los, quebrar as muralhas de pedra que circundam o coração, muralhas construídas aos poucos até tornarem-se o grande esquife de nossos corpos. Em névoas eles se encontram, espalhados em nuvens fantasmagóricas, retratos surreais, esguios, cintilantes, perfeitos. Os tomos, poderosos arautos das imaginações, iluminam a estrada com suas palavras que fascinam. Quem jamais sentiu o incomparável feitiço do transporte que nos revelam seus trechos, as ondas delirantes de sua tinta, a fragrância que invade as narinas, sob cuja atuação desvendamos os mistérios da nossa pré-existência, abrindo gigantescas portas dentro de nós mesmos? Os filhos nossos que soergueram suas cabeças e escaparam da vigilância constante dos olhos vivos do mundo real, nossos filhos pródigos.

O encantamento quebrado, mas não totalmente desfeito. A aurora que morre, o penhasco que não mais sorri, o orvalho que evapora, as nuvens que se vão, o tempo que escorre por entre as artérias do céu. Meus olhos que enxergam dentro de mim os mundos de minha mente, à deriva, deliberando a existência de pensamentos proibidos do outro lado. Um passo a mais, e a grande muralha sucumbirá. Um portal se anuncia envolto em luzes místicas, e as essências se fundem: vejo-me acenando, e os filhos nascidos na terra da idéias clamando pela minha ida. O sol media o firmamento e observa o retorno daquele que não partiu. O abismo clareia. Um passo a mais: a queda e a ascensão.

Poderei eu estar vagando nas fantasias de minha imaginação ou nas pradarias nebulosas de meus sonhos, mas ainda que o labirinto das ilusões possa estancar o rio que flui em meu olhar ou as borboletas espelhadas da realidade se manifestem, mesmo assim, eu ainda hei de saber que existe outro mundo dentro de mim, a morada mais profunda de minha mente universal, onde não há tempo, não há dimensão, não há palavras; apenas sensações que me permitem ter a certeza de sua existência serena e eterna de tão imaginária.