12 de maio de 2008

Jacqueline

Terrivelmente cinzento. Era como se as cinzas de todos os mortos de todas as gerações estivessem perambulando sem rumo ao gosto melancólico dos ventos. Lá estavam os troncos desnudados, grotescos, esturricados pelo frio do outono, não tão agressivo quanto os gélidos sopros invernais, mas mais sorrateiro, perscrutador, que invade silenciosamente, vagarosamente, e leva consigo o calor até que se note que se deseja mais o sol do que qualquer outra coisa. E talvez aí já seja tarde demais.

Era um banco negro, de uma madeira escuríssima e maltratada, isolado no meio do nada, num clarão aberto sem qualquer sentido em meio às àrvores negras, em existência latente e sem folhas. Galhos secos e farfalhantes talvez fossem o único soar que houvesse, não fosse um sensibilíssimo respirar, um fôlego de leveza extraordinária, vindo de uma jovem garota no limiar último de sua infância, vestida de breu talhado e esculpido em sedas nodosas das teias da própria noite. Seus pequeninos pés mal tocavam no chão, embalados em sapatilhas tão escuras, mas estranhamente reluzentes. Olhava sempre para baixo, tendo em suas mãos um livro do tamanho de suas palmas, de modo que não era possível observar sua capa. Concentrada e imperturbável, seus olhos negros devoravam cada página do livro, ferozes, atentos. Um grande chapéu, de aba exageradamente grande na frente, e curvada para os lados, combinava com perfeição aos seus demais adereços, com exceção dos bordados complexos e labirínticos que o decoravam na extremidade das abas.

Desse modo, intocável, não via passar ao seu redor as profecias dos minutos, o cavalgar dos ponteiros, as fronteiras das estações ou a vidas e mortes dos homens: apenas estava lá. Se sentia desespero ou rancor, ódio ou indiferença, ninguém sabia. Elá sequer se movia, a não ser pelos pezinhos que balançavam mais ou menos frenéticos, e os olhares velozes por sobre as linhas de seu livro misterioso. As cinzas dos mortos de todas as eras deixavam-se carregar pelo ar mormente, alguns tocando o rosto e as vestes da menina, mas ela não se importava. Logo ela terminaria o livro, para recomeçá-lo em seguida, em uma sucessão de leituras repetidas sem qualquer descanso.

Talvez, e apenas talvez, a garotinha fosse a própria representação do fim dos tempos, lendo e relendo a história do mundo do início ao fim, até que logo o relia, mesmo sabendo do final, e do início, e das entrelinhas, enquanto os resquícios de todos os mortais que já respiraram por sobre esta terra se dispersavam e passavam à sua frente, e nunca paravam, tantos eram os mortos, e tantos eram os vivos que ainda estavam para morrer...

Diz-se que uma vez chamaram-na por um nome, que ela atendeu, mas isso foi há muito, muito tempo atrás, e talvez suas vestes ainda fossem brancas. Conta-se que enegreceram pela cinzas...Será? Há quem diga que ela apenas se levantará de lá quando a última migalha dos restos mortais do último homem passar, e então ela fechará o livro e se levantará, e será o dia que alçará o patamar de jovem mulher, a nova donzela, e terá atravessado o portão dos jardins pueris, e ter-se-á enfadado do livro e logo sairá, em busca de outro que lhe pareça mais interessante, seguindo na direção para onde os ventos derradeiros do outono uivam.