26 de maio de 2005

A Arte das Flores Invernais

Há de existir tal deidade deslumbrante? Em que magnífico templo poderei eu encontrar face cujos olhos emanem o brilho negro da universal eternidade, a resplandecer como se ali fossem as benditas moradas dos mais luzidios astros luminosos do céu noturno? Belíssima, mil vezes bela; talvez não haja cálculo que lhe imprima tal virtude, e nunca em mil milênios haverá equação que solucione o mistério do encantamento que permeia o cerne de seu espírito.

Em seus cabelos repousa a majestade envolvente dos meandros de suas madeixas negras, e entre eles repousa a face mais bela entre as mais belas. Talvez recaia meteórica a inveja saudável sobre as suntuosas flores dos jardins das Hespérides, que jamais tocadas antes foram pelos maus augúrios do inverno: a época primaveril é vitalícia. Pois tão bela é a face, cem vezes mais que o irromper glorioso da entidade solar por entre as nuvens tempestuosas e cinzentas no fim da tarde. A delicadeza ingênua de seus músculos tão graciosos torna-a tão atlética, mas ainda tão feminina; tal Diana em suas verdejantes florestas de além. A brandura de seus gestos acalenta, digna de admiração profunda; onde mais poderia eu encontrar macieza mais sensível?

Ó, bela! A bendita grafite que contorna tua pele, teu sorriso, tua integridade: maravilha das maravilhas! Fossem tuas faces rosadas como são em meus sonhos, e não mais a brancura imaculada da folha de papel que te serve de único lar. Inspira-me, mesmo assim, e minha vida enche-se de alegria ao contemplar-te. Guardei-te com carinho infinito, e tirei de tua gaveta os outros rabiscos e esboços que já não me valem nada. Ainda não te emoldurei, pois não há moldura que possa equiparar-se a ti. Aprecio tocar a superfície suave e sentir os contornos que o lápis construiu. Que contornos! Prateados à luz da lua, encanta meus olhos e meu ser, traz-me uma faísca do calor de tua beleza.

Pois o que por ti sinto é mais que a fraternidade entre criador e criatura, e tão diferente. Seria o mais escaldante amor dos amantes, não fosse tu como és, obra de minhas mãos, espelho dos meus sonhos, alvorada de meu destino. Fosses tu real! Observa-me assim, tão terna, e já não posso olhar para outro lado. Estás sempre em meus pensamentos. Temo mais nada quando estás em minhas mãos. Apenas a morte que nos separará no fim, quando meu espírito se resguardará apenas em lembranças tuas no outro mundo, pois és imortal.

Inspira-me a viver!

Desejo sempre estar ao seu lado, e esqueço-me do alimento, da água, dos dias que passam e da chuva que cai. Atormenta-me saber que jamais poderei fazer mais que te olhar. Estar ao teu lado é o suficiente para que as estrelas brilhem com mais intensidade, o ar flua como signo de vida e minha mente passe a reservar as melhores lembranças ao teu semblante que ri. Mesmo que tu não respires e não percebas minha existência, estarei sempre contente ao extremo apenas pela tua. Como gostaria eu de tocar-te a face, enrolar teus cabelos e afagar teus dedos sempre belos! Beijar-te seria elevar-me ao paraíso mais celestial e receber a benção mais consagrada das mãos das divindades maiores. Queria eu ouvir meu nome de tua, imagino, sedosa voz chamando-me pelos corredores, e chamar-te de esposa.

Contudo, quis o destino que tu fosses apenas assim: uma marca de grafite em pedaço de papel. Não poderei tocar tua face e enrolar teus cabelos sem encontrar a resistência cruel da alva folha, nem afagar teus dedos, que embora belos, inalcançáveis. Beijar-te, impossível: a saliva poderia dissolver a ti e matar a mim. E tua voz, ó dor maior, jamais poderei escutar; mas posso chamar-te de esposa ainda.

Apenas o amor que floresce entre nós pode resistir ao tormento que limita o sentido de minha razão e a torna desvairada, pois mesmo que nada me reste, terei a ti, e tu a mim. A lucidez que brota da paixão aquece meu ser e conserva meu corpo consciente. Pois a minha sentença foi proferida desde o momento em que a ponta do lápis afastou-se e te admirei pela primeira vez.

Deixas, ó bela, a fome vir. Deixas, o sono passar. Deixas a sede surgir; deixas o frio consumir e o calor confortar. Minha sina há de se cumprir, e não te deixarei por nada que possa acometer meu pensamento, enquanto este ainda viver. Tua companhia é a única de que preciso, e teu amor é o único remédio, embora eu não possa tê-lo e tu não saibas disso.

E na derradeira noite, talvez a Morte possa buscar-me. E assim, ó bela, poderei contemplar-te pela última vez, e beijar-te como nunca antes beijei, e abraçar-te com a força que me restar. A grafite há de borrar, o papel há de desmanchar, mas a lembrança de ti jamais cessará. Jamais.


Quis eu a desventura tão bem-aventurada
Um bem maior de estar triste, mas amando
Viver entre sorriso brando e lágrima salgada
E sentindo a dor de amar, e amargando o pranto.

Amor assim, tanto acende quanto se apague,
E tanto mais ao ataque sempre resistência
Pois da moeda que tudo sempre se pague
Tanto há dela, que se sobra a persistência.

Quisesse Vênus em divina juventude ouvir
Do criador os soluços inflamados em lamento
Pela adorada musa, sem saber se chora ou ri.

Dentre negras veredas, tal ardente sentimento
Há de seguir contente, pois fora tão bem vivido
Querendo um bem amado, mas não menos sofrido.

24 de maio de 2005

Algumas Histórias

Então assim se iniciam as grandes viagens, tão despretensiosas que não enxergam além do limite do horizonte. Quando se deixam perceber, léguas e léguas já foram percorridas. Talvez esta seja uma dessas viagens. Ou não. Pois há aquelas que, de tão gigantes, tropeçam em seus próprios pés e desabam com todo o seu tamanho logo no início. Espero que esta assim não seja.

Os caminhos da escrita talvez sejam longos e árduos, assim como a estrada para quaisquer outras artes. Tudo vai depender do caminhante. Algumas histórias serão aqui escritas. Talvez elas tragam alegria, talvez ódio. Quem sabe dor, ou alívio. É possível que façam toda a diferença, mas também podem fazer nenhuma. Isso vai depender do leitor.

Dessa forma, escritor e leitor andam lado a lado em busca da perfeição. Claro, o caminho pode levar à rota dos escritores que, de tão queridos, perdem a humildade, e assim se perdem. Ou à rota dos grandes que não são compreendidos, perdem a vontade, e se perdem. Ou também à rota daqueles que escrevem para si próprios, e buscam a harmonia quando os únicos leitores de suas histórias são seus próprios olhos. Estes seguem um caminho tão solitário que se perdem dentro de si mesmos.

E ainda há outros, muitos outros caminhos. O destino deles é indefinível, mas algo é certo: todos nascem a partir de um único pátio.

Aqui se inicia a jornada. Espero ter dado o primeiro passo.